segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Habitantes



IDEIA PARA UM JOGO INTERACTIVO
Num prédio antigo da cidade de Lisboa morreu um homem de solidão. Todos os inquilinos têm a sua quota parte de responsabilidade no sucedido. A ideia é o utilizador reflectir nas atitudes e nas vidas dos outros habitantes daquele prédio na procura de uma identificação dos motivos para aquela morte. A realidade é a de que ninguém fez nada e essa foi a principal razão da tragédia.

Sempre nos interrogámos sobre o que se passa na casa dos nossos vizinhos, todos já tivemos um vizinho sobre o qual especulámos se teria ou não uma segunda vida, todos sabemos que sabemos muito pouco acerca dos nossos vizinhos e portanto parece-me oportuno pensar e fazer um projecto acerca destes assuntos que nos são tão próximos.

Tive uma vizinha, uma idosa que vivia sozinha e que ninguém via no prédio nem mesmo para despejar o lixo nem para receber alguém, parecia que estava só no mundo ou então ninguém queria saber dela, ou melhor, ela não queria saber de ninguém. Eu sabia que ela existia e estava viva, pois ouvia ruído vindo do seu apartamento. Era uma senhora complicada e muito só que não comunicava verbalmente com os demais habitantes do prédio mas fazia-o com mensagens coladas na sua porta. Ela devia colocá-las durante a noite pois eu nunca a vi colocá-las e saía sempre cedo. Uma vez escreveu “nem todos podemos ser bonitos”, outra vez, “estou à morte” e noutra ainda “silêncio”. A senhora que não me parece ter sido publicitária, conseguiu, pelo menos em mim criar um ambiente de mistério e expectativa durante todo o tempo que vivi naquele prédio. Conseguiu também comunicar a sua solidão, as suas preocupações e reflexões face à vida, conseguiu comunicar o que tinha na vontade e conseguiu que por vezes as pessoas que por ali passavam pensassem também um pouco na vida de quem vivia para além daquela porta. Por vezes, a senhora não colava bilhete nenhum na porta e confesso que me preocupava. O aspecto mais relevante destas mensagens enigmáticas foi o facto de todos ou outros habitantes do prédio comunicarem entre si para tentar saber algo acerca da senhora.

Também já tinha escrito um argumento sobre um jovem ao passar por uma rua deserta à noite, recebia um convite de uma rapariga de voz sensual, através de um intercomunicador de um prédio. A porta da rua abria-se e o rapaz entrava no prédio sem saber de que andar lhe tinha sido feito o convite. Não lhe restou mais nada do que subir e tentar perceber de onde lhe vinha a proposta tentadora. Nessa viagem ele vai tentar perceber todos os sinais que lhe chegam vindos do outro lado da porta.

Numa visita ao CCB à exposição FANTASMAS de Nuno Cera vi o filme “Unité d'Habitation” de 2006 que tem por cenário um edifício de Le Corbusier em Charlottenburg e que num registo próximo dos filmes de suspense, ficciona um assassinato onde a câmara subjectiva está do lado do "mal" e do crime apenas se vê o resultado. Gostei da ideia da câmara atrás das portas, onde a imagem fica completamente negra, dando espaço ao espectador para adivinhar o que se passa do outro lado da porta e ficcionando dentro da nossa cabeça à semelhança do que João César Monteiro quis fazer com a sua “Branca de Neve”.

Uma vez o Miguel Sousa Tavares, quando ainda trabalhava na Grande Reportagem, relatou a história de um homem que vivia nos Estados Unidos e que foi encontrado morto na sua casa. Os vizinhos acharam estranho que tendo passado já um mês do Natal, as luzes da árvore festiva ainda continuassem acesas e foram investigar. Como ninguém abria a porta e através da janela viam um homem sentado numa poltrona, pensaram que ele tinha tido um ataque cardíaco e resolveram chamar os bombeiros. Os bombeiros confirmaram que o homem tinha morrido com um ataque cardíaco... mas há mais de um ano.

Não imagino esta ideia como um jogo com níveis e recompensas, pode sim ter diversos espaços onde podemos entrar ou não e dos quais vamos retirando informação e interagindo com os HABITANTES daquele espaço, com os seus objectos, com o seu passado e talvez com o seu futuro. A principal recompensa neste projecto é o percurso realizado e a reflexão sobre assuntos que nos são tão próximos. Acho que este produto poderia ser um exploratório onde o utilizador vai recolhendo indícios sobre a vida dos habitantes dos diversos apartamentos e isso condiciona as suas decisões no percurso.

O projecto poderia começar com um vídeo do homem morto e do seu espaço, talvez com a equipa do INEM a levá-lo. Através das conversas dos bombeiros e da polícia perceberíamos o sucedido e que funcionaria como arranque da história/percurso e aí tínhamos possibilidade de visitar a sua casa, os seus objectos e o seu passado. Depois poderíamos conhecer os outros habitantes, as suas vidas e como estão relacionadas com aquela morte. Não quero dar uma carga muito negativa ao projecto, aliás gostava que um dos aspectos mais relevantes da viagem do utilizador fosse realmente que a descoberta de novas pessoas e a partilha das suas vidas é o principal motor de uma vida plena em sociedade.

Dez anos.

Lembro-me de lhe pegar com cuidado e de o levar para casa no bolso da camisa.

Quando o enquadrei na mira da pressão de ar, suspenso na respiração, vi como o seu peito orgulhoso se enchia de ar e de dentro saía um cantar alegre e distraído. Nem dei pelo dedo quando escolheu aquele momento. As folhas não tiveram força para o segurar e caiu no chão a poucos metros de mim.

Esteve ali, em cima da mesa da cozinha durante muito tempo sem que eu soubesse o que fazer com um pássaro tão bonito,mas que não se mexia.

Fiquei muito contente quando vi que o gato sabia.

sábado, 15 de agosto de 2009

#0001



Um pequeno contributo para a felicidade

Assim que entrei os que deram pela minha presença sorriram. Facto estranho num café da minha rua onde nem sempre vou e nem todos me conhecem. Mas se são sorrisos, são sempre bem vindos mesmo daqueles que não conhecemos. Pedi uma bica em chávena fria e quando me sentava ao balcão tive a sensação que do ruído da sala agora só sobrava o silêncio. Era um silêncio sorridente apesar de tudo. O empregado, um homem de bigode, passou a mão pelo cabelo devagarinho. Não percebi o gesto e havia qualquer coisa de estranho no seu olhar.
Era sábado. Tinha passado a tarde com as minhas filhas, no meio de brincadeiras com casinhas de bonecas em que nunca fazia de pai e quase sempre era um filho muito mal comportado que precisava constantemente de ser castigado. Desde que saíra de casa que tinha a estranha sensação de que muitas pessoas davam por mim na rua e que quase sempre nos seus rostos se abria um sorriso rasgado. Sentia-me bem por ver pessoas que eu nunca tinha visto, que por uma razão qualquer achavam que me deviam sorrir e dirigir o seu olhar. Comecei a prestar atenção e reparei que só quando por acaso os olhos das pessoas se cruzavam comigo, é que estas sorriam. Era algo no meu olhar, que só conseguiam perceber quando estavam perto de mim. Um magnetismo qualquer que só emana das pessoas verdadeiramente especiais e se torna mais forte quanto mais perto estivermos delas. Esta constatação esclarecida e fundamentada num grande sorriso colectivo, contagiou-me de confiança e alegria que me levaram a retribuir todos os sorrisos de forma franca e intensa. Rica tarde. Que raio teria eu que hoje levava a que todos gostassem de mim. Nunca tive grandes problemas de confiança, mas se os tivesse, hoje com certeza todos se dissipariam. Um miúdo até apontou para mim num gesto eufórico que levaria a entender que eu poderia ser uma estrela de televisão ou até qui ça futebolista. Foi logo advertido por uma senhora que quando olhou na direcção do indicador do miúdo não escondeu um largo sorriso ao qual também não resisti. Só podia ser coincidência, estavam a confundir-me com alguém. É o que dá deixar de ver televisão, de certeza que sou um sósia de alguém muito famoso que entra em casa das pessoas em horário nobre.
Na papelaria onde todos os dias compro o jornal, a empregada sisuda que nunca me dirigiu um olhar simpático durante os últimos anos e inclusivamente já tinha tido com ela alguns atritos sem grande importância, nesse dia parecia outra pessoa. Não era um grande sorriso, mas lá estava ele nos seus lábios finos e um pouco trocista. Os seus olhos é que não me largavam como se eu fosse um velho amigo que não via há muito tempo e me quisesse contar todos os cabelos brancos que teimavam em aparecer e que agora não me faziam a menor diferença. Paguei o jornal do costume e até fiz um totoloto reforçado. Num dia como este a sorte estava de certeza do meu lado. Saí a sorrir, retribuindo a amabilidade da atenção. Lá dentro, através da montra, vi-a cochichar com a colega de forma entusiasmada.
De regresso a casa, satisfeito, encontrei a senhora que limpava as escadas e que se afastou para me dar passagem. Olhei-a nos olhos e sorri, na esperança de recarregar até ao fim todo o meu ego. Ela não resistiu e soltou um oh de satisfação. Subi as escadas com passadas largas e vigorosas. Ainda não tinha entrado em casa e já a minha filha mais velha me saltava para os braços. Ao contrário das pessoas que tinha encontrado na rua ela estava muito séria e perguntou-me porque raio tinha levado para a rua o gancho cor de rosa preso no cabelo.