terça-feira, 15 de setembro de 2009

POST-SCRIPTUM

Gostaria de saber
Com que sonha quem não sonha,
Que tem para se entreter
E fazer meio-risonha
A vida que ha por viver...

Gostaria de sentir
Como é a alma que vive
Sem para a alma sorrir...
Eu sonhei e nada obtive.
Sonharei sem conseguir.

Mas do que fiz e que faço,
Que é nada, como o é tudo,
Guardo no meu ser o traço
Do sonho que me faz mudo,
E rio-me do cansaço...

Os grandes homens da terra,
Os que fazem sem grammatica,
Phrases de paz e de guerra,
E sabem tudo da práctica
Salvo que a práctica erra

Ah, esses teem presença,
Multidão e biographia...
Que o Fado os tenha na crença
Que esse valer tem valia!...
Casei com a diferença...

9-X-1927
FERNANDO PESSOA


domingo, 13 de setembro de 2009

Tudo a kilo que desejas.



Quantas vezes nos apeteceu oferecer a alguém a lua, o céu ou uma estrela? Esta ideia para um projecto fotográfico abre a possibilidade de oferecer tudo aquilo que sempre imaginámos que seria a verdadeira necessidade de alguém. A possibilidade de oferecermos prendas verdadeiramente originais e que vão muito para além da oferta comercial vigente. Ok, não é a mesma coisa porque não estamos a oferecer a coisa em si, mas como poderíamos oferecer algo que nem sequer nos pertence? Será que a representação, a imagem do nosso objecto de desejo não é suficiente por si só? Mesmo que na maioria dos casos, a resposta seja negativa, podemos sempre dizer que afinal, aquilo que conta é a intenção.

Reflections in a silver watch





terça-feira, 8 de setembro de 2009

Pairar tem qualquer coisa de pai e de ar


Este sou eu. Pela mão pequena da Alice eu sou assim, riscado a vermelho sobre fundo branco com formas pouco regulares e de olhar admirado. Gosto muito desta figura simples onde todo o corpo é uma cabeça com olhos grandes em cima de umas frágeis pernas e com braços muito abertos. Se é uma figura instável, que pode cair a qualquer momento, ainda bem que não existe nada em volta onde se possa magoar... mas, talvez não esteja a ver o desenho correctamente e afinal, ele esteja de pernas para o ar... ou ainda, apenas a pairar no vazio. Pairar tem qualquer coisa de pai e de ar também...
Os desenhos das nossas crianças têm sempre qualquer coisa de astrológico, para além de toda a natural carga afectiva. Por um lado são complicados na sua simplicidade e portanto, difíceis de entender. Reside aí, sem dúvida o seu principal interesse , que nos permite explorar todos os seus traços e divagar sobre eles em múltiplas direcções com o mínimo de informação. Depende sempre da idade da criança. Por outro lado, e este sim o tal lado astrológico, estamos sempre a ajustá-lo à nossa realidade como uma forma abstracta que se devia encaixar em nós e fazer sentido.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O que eu vejo a partir da EN 321


A estrada que liga Castro Daire a Cinfães passa por aqui. Faifa, fica por trás do primeiro monte, em plena serra de Montemuro. Hoje é um pequeno lugar quase deserto. No verão ainda recebe os filhos e amigos dos últimos residentes da aldeia. É um lugar de muitas memórias, pois apesar de os meus pais terem vindo com a família trabalhar para Lisboa quando eu tinha apenas 6 meses, foi aqui que passei todas as minhas férias grandes até aos 12 anos.
Foi aqui que aprendi a usar uma fisga, a construir um trenó, a subir às árvores, a treinar um cão, a assobiar e onde acima de tudo, aprendi a viver com as histórias do meu avô.

Uma vez contou-me uma história que se tinha passado nos anos quarenta, possivelmente durante a segunda grande guerra, quando um avião se despenhou nestes montes. Foi ele a primeira pessoa a chegar ao local do acidente e a ver o sucedido, pois andava no monte com as suas cabras. O avião estava em chamas e o piloto apresentava muitas queimaduras e arrastava-se pelo chão. O meu avô contou-me que não percebia nada do que o piloto dizia (ainda hoje não sei se era alemão ou inglês). Lembro-me de que quando me contou a história aquilo era muito importante mim, e lembro-me de ter ficado chateado pelo facto de ele não saber, pois as brincadeiras dos Nazis e da Resistência estavam muito na moda na altura e eu cá era da Resistência e se por acaso aquele homem fosse um boche, eu nunca o teria ajudado. Mas ele podia ser inglês... e isso não foi importante para o meu avô, pois a única coisa que importava era ajudar aquele pobre homem que estava em muito mau estado. Ficou ali com o homem nos braços até chegar ajuda àquele local deserto. O que é certo é que passadas algumas horas, chegaram uns homens que levaram o ferido numa maca para o local onde a ambulância tinha ficado.
O meu avô contou-me com muito orgulho, que um homem de fato, lhe pediu para tomar conta dos destroços do avião até que uma equipa o pudesse vir buscar. Ficou ali quinze noites, sozinho no monte, iluminado por uma pequena fogueira e na companhia das estrelas.
Sempre achei fantástico o facto de o meu avô, viver numa terra tão pequena, num sítio isolado, ter dado o seu contributo para o salvamento de um soldado na possível segunda grande guerra. Mesmo que o soldado fosse alemão.