Bitoque


A Carlota comprou um carro amarelo. Um Ford Taunus já com uns anos mas ainda em bom estado. Pelo menos assim aparentava. Todos queriam experimentar o carro. Era uma viatura fantástica e talvez por não estávamos habituados a ter carro, para o grupo essa sensação era enorme. O melhor carro do mundo era nosso, e mais... era amarelo. O namorado da Carlota lembrou-se de lhe chamar Bitoque em homenagem ao ovo a cavalo...Não tem muita lógica, mas o nome era giro.

As saídas à noite já não eram a mesma coisa, agora não era preciso esperar pelo primeiro autocarro da manhã depois das saídas ao Bairro Alto. A Carlota nunca bebia por isso a ida e a vinda eram sempre muito seguras. Todos contribuíamos com o dinheiro da gasolina. Foram algumas semanas de loucura vertiginosa naquela magnifica máquina. Naquela idade, achavamos que podíamos fazer qualquer coisa e quando digo qualquer coisa é mesmo tudo, até aquilo que hoje parece impossível. Desde sair pela janela de trás do carro a 120 à hora e entrar pelo outro lado passando por cima do tejadilho e sentir o vento fresco da noite na cara a dar-nos alguma lucidez para não soltar as mãos do frio metal, até que alguém nos ajudava a entrar pelo outro lado.

Passado algum tempo, o carro começou a apresentar problemas de motor . Na oficina o diagnóstico "era qualquer coisa nos segmentos"... Aquilo para nós era grave, apesar do desconhecimento geral em termos de mecânica. Afinal o carro tinha os seus dias contados e a nossa revolta começou aí. O vendedor era um um tipo seboso, barrigudo e a cheirar a alho e nós fomos uns patinhos que compraram um carro condenado e que só valia o seu peso em ferro.

O namorado da Carlota já trabalhava e tinha um emprego numa companhia de seguros onde aprendeu os segredos do ofício e que foram preciosos num plano magnífico e esquematizado por ele e que basicamente, consistia em fazer desaparecer o carro e apresentar queixa do seu desaparecimento à polícia de modo a podermos participar à companhia e receber o dinheiro do seguro. Claro que o que ele queria era, no fundo, ser mais esperto que o seboso do vendedor de automóveis que lhe tinha vendido um chaço.
Incendiar o carro foi logo avançado pelo Nandinho, que de jeito na cabeça, só tinha uma popa que fazia muita inveja a muitos rockabillys das redondezas. Mas os problemas foram logo levantados pelos tipos mais ajuizados; o fogo podia propagar-se a outros carros, era perigoso usar gasolina e fósforos, etc etc etc.

O carro acabou por desaparecer algures numa rua escura da cidade. A participação foi feita e o seguro cobria o roubo. O carro foi encontrado e convenientemente explicado que o motor estava arruinado, tinha qualquer coisa nos segmentos, e que não tinha arranjo.

Um dia, estávamos todos em casa do namorado da Carlota como habitualmente, quando alguém toca à campainha. Já tinha passado algum tempo sobre este incidente e por isso ninguém pensaria que os dois homens de fato que seguravam pelo braço um adolescente de olhar assustado, fossem falar disso outra vez... Mas a surpresa foi ainda maior quando nos disseram que aquele rapaz afirmava ter roubado um carro amarelo, igualzinho ao nosso "bitoque".

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